quarta-feira, 14 de outubro de 2009
A intolerância machista contra as mulheres
“Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome.”
(Clarice Lispector)
O artigo escrito por Carlos Alberto Di Franco para O Estado de São Paulo não chega a surpreender. Quem conhece a trajetória do ilibado professor sabe da sua profunda identificação com setores mais reacionários e ortodoxos da Igreja Católica.
O Partido dos Trabalhadores é produto da luta democrática, do desejo de homens e mulheres de construir justiça e igualdade. Entre eles, muitos companheiros e companheiras referenciados na Igreja, notadamente, na Teologia da Libertação.
Os deputados Luís Bassuma e Henrique Afonso se desfiliaram do PT afirmando que foram “vítimas” de intolerância religiosa. Ora, nossa tradição democrática, a mesma que contribuiu com construção da limitada democracia brasileira, nos ensina que nenhuma crença deve se impor sobre a outra. Nenhuma é exclusiva no grau de verdade que carrega. Nenhuma pode ser discriminada. Daí, a compreensão nítida de que o Estado é laico, e não pode se orientar por uma ou outra religião, nem pela negação delas, sob pena de incorrer em erros que a humanidade já assistiu muitas vezes.
Quem praticou a chamada intolerância religiosa foram exatamente os dois parlamentares. Foram intolerantes com quem não compartilha de suas crenças. Foram intolerantes com o feminismo, que esteve desde o princípio na construção do PT, e com a democracia partidária, que define as resoluções e encaminhamentos do partido.
Na nossa concepção, os partidos políticos devem ser fortalecidos diante da atuação individual. Isso inibe a corrupção e politiza a relação com o eleitorado. Portanto, os mandatos parlamentares são instrumentos do partido de defesa de suas bandeiras. É surrealismo que um mandato parlamentar do PT possa ser usado como instrumento de uma batalha contra uma posição importante do próprio PT. Bassuma e Afonso não apenas votaram contra orientação partidária, colocaram-se como expoentes centrais contra uma posição do PT, publicamente, e se utilizando do mandato que lhes foi garantido com votos depositados no partido. A punição a eles determinada pelo Diretório Nacional era o mínimo que se esperava de um partido que se leva a sério.
A base do reacionarismo
Em seu artigo, o professor Di Franco afirma que sua opinião quanto ao aborto tem base para além da religiosa, filosófica e científica. Mas a Ciência e a Filosofia não estão à disposição de comprovar que se justificam milhares de mortes de mulheres em prol de uma dita “defesa da vida”. Não é fato que a vida se inicia na concepção. É mentira que as mulheres são “hospedeiras” de seres autônomos. É mentira que os embriões são organismos completos. Falácias jogadas aos quatro ventos para defender opiniões retrógradas que, entre suas conseqüências, alienam os corpos e as vidas das mulheres, tratando-as como “hospedeiras”, determinando que seu destino, queiram elas ou não, é a maternidade, e que elas nem sequer podem escolher em que momento ser mães.
Esse tipo de raciocínio defendido é o mesmo que, levado ao extremo, legitimou barbáries na história da humanidade, nas quais sempre o mesmo setor da Igreja esteve envolvido. E como todo propagador desse tipo de idéia, o professor usa argumentos falaciosos com vistas a rotular seu “adversário”.
É, no mínimo, lamentável que um jornalista doutor em Comunicação promova uma infeliz comparação entre legalização do aborto e “eliminação de doentes”. É lamentável porque é manipulação de discurso, por induzir seu leitor ao erro propositadamente.
As mulheres defendem a legalização do aborto há décadas, e já não sofrem o isolamento que o professor nos imputa. Países reconhecidamente conservadores como Portugal e México fizeram o debate e promoveram a regulamentação. Praticamente todos os países ditos “desenvolvidos” têm a prática de aborto regulamentada em seus territórios, o que fez diminuir as mortes de mulheres e a própria prática de aborto.
Liberdade com igualdade
As mulheres não recorrem ao aborto porque querem. Elas recorrem ao aborto porque a hipocrisia insiste em fingir que elas não existem. Porque condenam o uso de preservativos. Porque reforçam o mesmo machismo que violenta mulheres e que as abandona, muitas vezes, ao enfrentar uma gravidez indesejada.
As mulheres recorrem ao aborto porque não têm saída. Legalizar o aborto é uma forma de incluir essas mulheres. De acabar com a hipocrisia que garante apenas às que podem pagar o acesso a uma clínica clandestina. De prevenir tantas mortes e tantas seqüelas. De apresentar um programa de planejamento familiar e universalização do acesso a métodos anticoncepcionais. Legalizar o aborto é parar de fingir que o problema não existe.
Causa muito incômodo a alguns que as mulheres lutem por liberdade e autonomia. Essa luta está no combate à violência sexista, na busca de igualdade no mercado de trabalho, de socialização do trabalho doméstico, contra a mercatilização do corpo das mulheres. Sempre enfrenta a intolerância, mas nunca se retraiu por isso. E foi assim que a humanidade caminhou no sentido da igualdade, embora ainda haja um longo caminho a percorrer.
De nossa parte, feministas, nos conforta saber que o discurso que o professor Di Franco representa é de um setor, não de um amplo setor, como ele quer fazer parecer. Muitos companheiros e companheiras da Igreja estão conosco nessa luta.
Liberdade de expressão, nós, feministas e petistas, conhecemos bem. Nós ajudamos a construir o conceito. Nunca estivemos de outro lado.
Alessandra Terribili, integrante da Secretaria Nacional de Mulheres do PT e militante da Marcha Mundial das Mulheres.
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