Algumas considerações sobre a recente pesquisa do IPEA - Tolerância Social à Violência contra as Mulheres, que nos traz dados importantes para a nossa reflexão.
Link para a PESQUISA
Os movimentos de mulheres precisam repensar as ações, principalmente quando observamos as características dos entrevistados. Avançamos em vários setores, conquistamos Leis, políticas públicas, mas não estamos conseguindo dialogar com as mulheres, em especial as mulheres entre 30 e 59 anos.
Vejamos as características dos entrevistados:
A) Residentes no Sul ou Sudeste: 56,7%
B) Residentes em áreas metropolitanas: 29,1%
C) Pessoas jovens, 16 a 29 anos (jovens): 28,5%
D) Pessoas adultas, 30 a 59 anos: 52,4%
E) Pessoas idosas, 60 ou mais anos (idoso): 19,1%
F) Mulheres: 66,5%
G) Brancos: 38,7%
H) Católicos: 65,7%
I) Evangélicos: 24,7%
J) Demais religiões, ateus e sem religião: 9,6%
K) Menos que o ensino fundamental: 41,5%
L) Ensino fundamental: 22,3%
M) Ensino médio: 30,8%
N) Ensino superior: 5,4%
O) Renda domiciliar per capita média: R$ 531,26
ATENÇÃO - 66,5% das pessoas entrevistadas são mulheres.
De acordo com a pesquisa, um número significativo de mulheres concorda total ou parcialmente com a máxima de que:
“se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros” (58,5% dos entrevistados)“mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas” (65,1% dos entrevistados)
“em briga de marido e mulher, não se mete a colher” (78,7% dos entrevistados)
“tem mulher que é pra casar, tem mulher que é pra cama” (54,9% dos entrevistados)
E a pergunta que não sai da cabeça desde a leitura da pesquisa: Será que estamos no caminho certo?
Há alguns anos venho participando de atividades como formadora na questão da violência contra a mulher, em especial, como nos organizarmos e atuarmos para que mais mulheres sejam protagonistas da própria história e transformadoras de um mundo em constante movimento.
Por séculos o capitalismo vem ditando as regras da sociedade. Definiu o que é espaço público e privado, o que é trabalho produtivo e reprodutivo e, junto com as classes sociais, dividiu sexualmente o trabalho. Às mulheres coube o espaço privado com o trabalho reprodutivo, não valorizado e não remunerado. Gerando uma hierarquia familiar, onde os homens tem a posse da casa, da família e da mulher.
E em pleno século XXI, nós ainda reproduzimos o espaço "santo sacro" da família tradicional composta por papai, mamãe e filhinhos. Ainda defendemos esta instituição como alicerce da sociedade, mas não consideramos os milhões de famílias chefiadas por mulheres, os milhões de brasileiros e brasileiras que não tem o registro do pai em seu nascimento e que tem apenas a figura da mulher mãe como referência de vida.
Quando questionados se concordam que "Casamento de homem com homem ou de mulher com mulher deve ser proibido" mais de 50% concorda total ou parcialmente. Quase 40% discorda que "Um casal de dois homens vive um amor tão bonito quanto entre um homem e uma mulher" e mais de 59% dos respondentes concordam total ou parcialmente que “incomoda ver dois homens, ou duas mulheres, se beijando na boca em público”.
Por mais que os movimentos LGBT tem avançado em conquistas importantes, ainda não mudamos a máxima da família perfeita, do espaço privado controlado pelo homem chefe da família, senhor de todos os direitos sobre seu patrimônio.
Enfim, voltando a pesquisa, entro no ponto que mais me deixou preocupada: a questão da violência sexual contra meninas e mulheres, em especial a questão do estupro.
Para os entrevistados (66,5% mulheres) mais da metade concordou total ou parcialmente com a afirmação “tem mulher que é pra casar, tem mulher que é pra cama”. Se 58,5% concorda total ou parcialmente que “se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros” e se 65% das pessoas que responderam à pesquisa concordam com a afirmação de que “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. Nós, mulheres, não estaríamos legitimando e autorizando os pênis a estuprarem as mulheres que são pra cama?
O que é mulher para casar e o que é mulher para a cama?
O modelo de mulher criado pelo capitalismo da dona-de-casa que brinca de casinha, mãezinha, santa e casta, submissa e subjugada a seu tutor, boazinha, obediente, prendada, boa parideira, que se cala e que cuida com zelo do espaço privado mantido por seu senhor, é a mulher para casar?
Já a mulher, que vai a luta, "vadia", que rompe tabus, dona do próprio corpo, independente, que gosta de sexo e se permite escolher o parceiro com quem quer ter orgasmos, que usa a roupa que lhe convém, vai onde tem vontade, esta seria a mulher pra cama?
Sim, igual ao capitalismo, estamos criando o espaço publico e privado da violência sexual contra a mulher.
Mais uma questão:
Para 27% dos entrevistados "A mulher casada deve satisfazer o marido na cama, mesmo quando não tem vontade", mesmo sem vontade ela deve ao marido a obrigação de "serví-lo", isto não é considerado estupro? E o pior, o estupro de uma santa?
Mas, por favor, esta questão deve ser resolvida no espaço privado, pois para 89% dos entrevistados "A roupa suja deve ser lavada em casa".