domingo, 24 de fevereiro de 2019

Violência Institucional - Contra as Mulheres e a Democracia

Material produzido em novembro de 2018, publicado em 
https://pt.org.br/schirlei-azevedo-vamos-falar-de-violencia-institucional-contra-as-mulheres-e-a-democracia/

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Estamos em um período de intensos debates sobre a violência contra a mulher com a Campanha dos “16 dias de ativismo pelo fim da violência contra a mulher”. Movimentos sociais, entidades sindicais, legislativos, judiciário, partidos políticos, organizações governamentais e não governamentais reforçam e ampliam o debate, onde o foco principal praticamente se reduz à violência doméstica e sexual.  Ao falar sobre violências contra mulheres, meninas, lésbicas, trans, jovens, idosas, negras, indígenas, ribeirinhas, do campo e das cidades, tocamos em feridas profundas na sociedade e mostramos quão frágil é a sociedade onde vivemos, o “mimimi” incomoda.



Quando as violências saem do âmbito público e passam para o espaço privado, como a doméstica ou familiar, o silêncio é ensurdecedor e a naturalização de algumas formas de violências cotidianas impede que as mulheres se reconheçam e as reconheçam na sociedade ou na sua própria casa. Para que o “reconhecer-se” aconteça, faz-se necessário e urgente aprofundar o debate em todos os espaços onde atuamos e criar as condições para que todas compreendam que tais violências são consequência de uma construção histórica, social, cultural, política, econômica, que estabelece papéis diferenciados para que mulheres e homens atuem em campos distintos.



Ao determinar que aos homens caibam posições de maior relevância na sociedade, institui-se uma divisão sexual dos papéis e uma organização social de gênero hierarquizada, onde o poder sobre “ela” se estabelece e, geralmente, vem acompanhado por alguma forma de violência em uma relação de dominação-exploração, que invade todos os espaços da vida social. Às mulheres resta desempenhar papéis sociais que os homens recusam para si, uma herança secular do patriarcado, de incapacidade e submissão.

Tais desigualdades são estruturais e se reproduzem para além dos espaços domésticos. Por vezes despercebidas, pela forma sutil como se apresentam, estão muito presentes no cotidiano de todas. Seja no trabalho que exercem, onde as mulheres ganham bem menos que os homens, mesmo exercendo exatamente as mesmas funções (em alguns casos a diferença pode chegar a 37%), ou nos serviços públicos ofertados que possibilitem à mulher entrar no mercado de trabalho (a ausência de políticas que viabilizem os cuidados com crianças, pessoas idosas, adoecidas, são determinantes), ou como as empresas de comunicação vendem produtos e serviços utilizando “corpos perfeitos” e veiculam mensagens direcionadas apenas às “belas, recatadas e do lar” e escravas da cultura da beleza.

Entre estas negações de direitos, nem sempre consideradas violências, está o que chamamos violência institucional, que também traz em sua raiz as desigualdades de gênero, materializada tanto nas relações de trabalho (privado ou público), quanto no acesso a serviços constitucionalmente garantidos. É um tipo de violência motivada por desigualdades de classe, mas também de gênero, geracional, étnico-racial, econômica, social, predominantes no modelo de sociedade capitalista, onde a necessidade de vender a força de trabalho na lógica de concorrência, por si só, já configura uma violência.

Decorrente de relações de poder e/ou política e integrada à cultura das relações sociais estabelecidas em instituições, sejam elas públicas ou privadas, podem ser percebidas nas formas de gestão cujo foco está no crescimento e alcance de resultados maiores e melhores, por muitas vezes desconsiderando normas previstas em leis, tratados ou convenções. Há vários exemplos de violência institucional contra a mulher nas relações de trabalho, entre eles estão: dispensa sem justa causa, assédio sexual e assédio moral, acidentes e adoecimentos em função do trabalho, negligenciar condições a gestantes, mudança de turno sem consulta prévia, salário desigual na mesma função, exigências para além do previsto no contrato de trabalho.

As mudanças ocorridas como as da “contra-reforma” trabalhista possibilitaram contratos de trabalho temporário, intermitente e de terceirização irrestrita, precarizaram relações e direitos para milhares de assalariadas, principalmente as empregadas domésticas. Aprovada pelo Congresso Nacional e proposta pelo governo federal, tal medida ao invés de promover a igualdade aprofundou o cenário de desigualdades.

O Estado promove e institucionaliza a violência por meio de ações e/ou omissões. A atuação policial nas ruas ou as práticas até mesmo inconstitucionais durante procedimentos investigativos podem configurar um tipo de ação de violência institucional por parte do Estado. Quando a causa da violência se estabelece pela omissão do Estado, um dos exemplos mais relevantes para a vida das mulheres está na não implementação dos equipamentos necessários para proteção das mulheres em situação de violência doméstica.

São inúmeras campanhas que encorajam milhares de mulheres a denunciarem as agressões vividas em âmbito doméstico, mas ao procurarem o auxílio não encontram delegacias especializadas, centros de referência e assistência, casas abrigo, agilidade na emissão de medidas protetivas, resultado: 1.133 feminicídios em 2017 no Brasil.

Talvez seja o maior exemplo de violência institucional contra mulheres, já em situação de violência: o poder executivo que não viabiliza e implementa a política, o legislativo que não fiscaliza a política, a demora na atuação do poder judiciário, os abusos e o descaso na relação entre profissionais e a usuária dos serviços, infelizmente carregadas de práticas discriminatórias em função da raça, etnia, orientação sexual e religião.

Quando o Estado aprofunda as desigualdades com medidas desfavoráveis negando direitos às “minorias” (maioria da população) e nos momentos de crise econômica, política, social, constitui medidas de austeridade (a exemplo da Emenda Constitucional 95), retirando direitos fundamentais como o acesso a saúde e assistência (universal e de qualidade), trabalho (decente e bem remunerado), segurança, alimentação saudável, educação (sem mordaça e com discussão de gênero), ele se torna agente violador. Há perversidade maior que taxar os mais pobres e isentar de tributos os mais ricos?

A eliminação da violência institucional contra as mulheres requer uma transformação profunda da sociedade e de nós mesmos. Precisamos desconstruir a cultura da indiferença, do medo e da resignação que conduz à naturalização das desigualdades sociais, dos atos de violência, de preconceitos de gênero, raça e etnia, geracionais e de orientação sexual. O que requer: coragem e mobilização para o enfrentamento, organização para formar e informar, participação política ativa em espaços de poder e decisão, cientes de que a violência institucional é uma ameaça real as nossas vidas e a nossa Democracia.

*Schirlei Azevedo é Assessora da Bancada do Partido dos Trabalhadores na ALESC, Vice Presidenta do PT Florianópolis e do Coletivo de Formadoras da Escola Nacional de Formação do PT.

sábado, 23 de fevereiro de 2019

PEC 06/2019 - Uma Violência contra as Mulheres




A Proposta de Emenda a Constituição (PEC 06/2019), chamada pela equipe do Governo como "Nova Previdência" não modifica apenas o sistema de previdência social, estabelece regras de transição e disposições transitórias. Tal proposição transformará a vida de milhões de brasileiros, em especial das brasileiras, com um verdadeiro desmonte do sistema de proteção social, aprofundará violências e irá gerar um exército de miseráveis, em um País onde a taxa de pobreza já atinge 30% da população com até 17 anos. 

Entre os fundamentos do Estado Democrático de Direito, previstos na Constituição de 1988, estão a cidadania e a dignidade da pessoa humana, vivendo em uma sociedade livre, justa, equânime, solidária e que promova o bem de todos, todas e todes. Entre os direitos e garantias fundamentais para a plena cidadania estão o acesso a um conjunto integrado de ações que envolvem tanto o Poder Público quanto a Sociedade, assegurando de forma universal uma vida digna. 

Anunciada como a "salvação econômica do Brasil", a PEC 06/2019 é uma proposta tão fake quanto a campanha eleitoral de 2018 e as alterações feitas na legislação trabalhista pelo (des) governo de Temer que garantia gerar mais de dois milhões de empregos formais, com carteira assinada e contribuindo para a previdência. Cabe resgatar também os efeitos nefastos da Emenda Constitucional 95 (EC 95) e o não  investimento por 20 anos em políticas públicas, já perceptíveis em todos os municípios brasileiros.

Quando o Congresso Nacional "legalizou" o trabalho informal, pejotizado e intermitente, optou por reduzir a arrecadação previdenciária e excluir milhões de trabalhadores e trabalhadoras do direito de acessar o sistema de proteção social, em benefício do empresariado. 

De acordo com Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) quase metade (46,9%) da população preta ou parda está na informalidade, 40,7% das trabalhadoras estão sem registro. Em algumas atividades como a agropecuária, 75,5% das mulheres não têm registro, e nos serviços domésticos, 71,2% das mulheres estão sem carteira assinada. Com relação a renda das trabalhadoras sem carteira assinada, em média, é de 73% de um homem na mesma condição. 

A importância de resgatar tais elementos no debate sobre a "Nova Previdência" está em demonstrar que tal proposta já não atinge quase 50% da população que sobrevive de um trabalho socialmente desprotegido e sem qualquer perspectiva de garantias para um futuro seguro. Salvo se conseguir poupar, mas com uma média mensal de rendimento em torno de R$1.000,00, fica impossível. O Banco Mundial afirma que "os brasileiros de todas as idades parecem ocupados demais com seus problemas no presente e não estão se preparando para a velhice", que nos apresentem a fórmula de multiplicação.

A proposta é de subir a idade mínima de aposentadoria para mulheres (62 anos) e homens (65 anos) e a obrigatoriedade de 40 anos de contribuição, para ter direito a uma aposentadoria de 100% sobre a média salarial de todas as suas contribuições. Neste contexto de trabalho precarizado e sem vínculos, é importante frisar que uma trabalhadora que inicie trabalho formal aos 18 anos terá que trabalhar e contribuir mensalmente com a previdência por 44 anos. Ou seja, registrar e contribuir sobre salário minimo, e ficar doente ou desempregada, nem pensar. 

Ora, se o que vale hoje nas relações de trabalho, é o trabalho informal e a terceirização irrestrita, onde há elevada taxa de rotatividade, com trabalhadores e trabalhadoras permanecendo em média 2,7 anos no emprego intermediado, teremos que trabalhar para muito além dos 80 anos. Importante considerar que somos um país onde o setor que mais emprega é o de comércio e serviços, em que as condições de trabalho são favoráveis a acidentes e ao desenvolvimento de doenças. 

Com a EC 95 - teto dos "gastos" públicos, o governo disse em alto e bom som: "Mulheres, voltem para as cozinhas e senzalas, não envelheçam e parem de parir por 20 anos", na ausência de políticas de cuidados para as crianças, idosos, pessoas com deficiência ou adoecidas, recai à mulher a responsabilidade deste cuidar. Aprofundando ainda mais a divisão sexual e social do trabalho, a feminização da pobreza e as dificuldades em se manter em um emprego formal. 

Diante desta PEC, as mulheres que cuidaram filhos, netos, bisnetos e não conseguiram contribuir com a Previdência, serão cuidadas por outras mulheres, sem qualquer proteção do Estado, até completarem 60 anos e terem o direito de receber R$ 400,00 mensais, por uma vida dedicada a fazer aquilo que o Estado se negou a fazer e a Sociedade e a própria família não reconhecem. 

A população de idosos no Brasil (entre 2012 e 2017) saiu de 25,4 milhões para mais de 30,2 milhões, vivendo em abrigos públicos em total situação de abandono, há 60.939 pessoas com 60 anos ou mais. A estimativa é de que em 2030, o número de idosos ultrapassará o total de crianças entre zero e 14 anos.    

Com relação a pensões e a redução do acúmulo de benefícios (pensão mais aposentadoria), cabe registrar que de acordo com o Anuário Estatístico da Previdência Social (2015), do total de pessoas que receberam pensão por morte, 84% (ou 6,2 milhões) foram mulheres. Apenas 2,3 milhões (8% do total de beneficiários de previdência) acumularam benefícios de aposentadoria e pensão, sendo 84% mulheres. A importância das pensões por morte para as mulheres na faixa etária de 60 anos é essencial a sua vida e a dos seus, apesar de três quartos das pensões por morte recebidas pelas mulheres não ultrapassarem dois salários mínimos.

A proposta que o Congresso Nacional terá que debater, ignora totalmente as desigualdades de condições de trabalho e salários e as diferenças regionais, ignora o índice de desemprego e a crescente do trabalho informal, o déficit habitacional 
(1/3 do salário é para aluguel), o transporte público ineficiente (1/5 do salário é usado para o transporte), a inexistência de "creches" públicas em período integral. Ignora as especificidades do trabalhador rural e na pesca artesanal, em especial das trabalhadoras, onde 70% das mulheres começam a trabalhar antes dos 14 anos. 

Tal proposta não reconhece as diferenças entre os setores público e privado, em especial, das mulheres na educação e segurança. Que os Benefícios de Prestação Continuada, aposentadorias, pensões, benefícios previdenciários e acidentários e o Abono Salarial geram importante movimentação na economia local - apenas 6% dos atuais beneficiários do Abono Salarial continuarão a receber.  

Implementar um regime de capitalização nas condições postas, é "suicidar" a população mais vulnerável e que precisa que a Seguridade Social (saúde, assistência, previdência) mantenha seu caráter público, universal, solidário, com o objetivo de reduzir desigualdades. As ruas do Brasil já estão repletas de trabalhadores e trabalhadoras excluídos do acesso a direitos previdenciários, através da MP 871/2019 editada em janeiro, blindaram o acesso a benefícios por afastamento do trabalho ou aposentadoria por invalidez. 

Se recusam a debater a necessidade de mudanças urgentes na Lei de Execução Fiscal e nos instrumentos legais que prestigiam o mau pagador, fraudador, sonegador. Devido a desvios, sonegações e dívidas, nos últimos 20 anos,  deixaram de entrar nos cofres da Previdência mais de R$ 3 trilhões. Esse valor atualizado passaria dos R$ 6 trilhões (dados do Relatório da CPI da Previdência), entre fraudes e sonegações, os números ultrapassam os R$ 100 bilhões.


A PEC 06/2019, cria as condições necessárias para excluir definitivamente quase 50% da população que ainda mantém algum vínculo empregatício e está segurada por um Regime Próprio, Regime Geral ou Regime Especial. Servindo como uma transição para "carteira de trabalho verde e amarela - laranja" e a privatização total da Seguridade Social. Não por menos, há a compreensão de que, pela complexidade e amplitude da proposição, esta é uma reforma constitucional, mas sem constituinte


Schirlei Azevedo é Vice Presidenta do PT Floranópolis e do Coletivo de Formadoras da Escola Nacional de Formação do PT 



Violência contra a Mulher - SC 2014